14 de junho de 2016

Sobressaltos. AAVV (Comic Heart/Europress)

Esta antologia nasceu de uma combinação de toda uma série de esforços que encontrou aqui uma expressão comum, mas não deixa de demonstrar essa mesma natureza desigual. O factor espoletador foram os encontros Sustos às Sextas, promovidos por João Castanheira e António Monteiro, que visam estimular a discussão e pensamento em torno de temáticas associadas ao sobrenatural, horror, terror, etc., nas suas mais diversas formas de expressão. Desses encontros e a aliança com Bruno Caetano, no papel de comissário e editor, já havia nascido uma exposição, Figuras Clássicas de Terror, em que alguns autores portugueses criavam representações gráficas de algumas personagens famosas da literatura e cinema de terror, e figuras mitológicas, nas mais diversas prestações. Caetano regressa aqui como co-editor (e também argumentista), operando a selecção dos convites aos autores. Juntando-se ao projecto, está Geraldes Lino, enquanto vigoroso promotor de fanzines e projectos de banda desenhada. Há ainda o facto editorial, que não é de somenos importância, agregando-se José de Freitas. (Mais) 
Logo à partida, sendo uma antologia em que cada história tem apenas duas pranchas, isto permite que haja um grande número de autores a participar, a saber, 22, sendo 2 deles argumentistas, e tendo participado André Oliveira com três histórias. O número de histórias é 20. Portanto, mesmo antes da sua leitura, estaríamos perante um projecto, o qual, enquanto antologia, poderia de imediato estar junto a projectos recentes como Crumbs, Quadradinhos, ou alguns dos projectos semi-temáticos da Chili Com Carne (e.g., Destruição, MdC # 23 e Lisboa é very, very typical). Porém, apesar da concentração do tema – explícito no sub-título, “Terror por autores portugueses de BD” -, a coerência não é total. Nem quanto ao tratamento do género ou matéria, nem quanto à própria qualidade de trabalho dos autores. De certa forma, a natureza desigual das participações nasce da própria condição do projecto, de ter de responder ao desafio mesmo que esses instrumentos não estejam preparados pelos autores, e pela diferença estilística, narrativa, filosófica, cultural, entre esses mesmos autores.


Quando da discussão em torno de Hellblazer, tivemos larga oportunidade para entabular uma discussão em torno do género do horror, “local de intensidades efectivas”, segundo a expressão de R. Sinnerbrink, e palco que nos provoca o “horror-arte”, tal como descrito pelo filósofo N. Carroll, aquela espécie de repulsa confortável em que mergulhamos quando lemos ou vemos (ou ouvimos) algo fabricado para suscitar o horror. Sabemos não estar em perigo face ao que é aventado na página ou no ecrã, mas mesmo assim o nosso corpo e espírito responde com afectos e frissons face a essas mesmas representações. Apesar das limitações que a banda desenhada tem em criar ambientes que cheguem a atingir esses píncaros angustiantes, não deixa de haver toda uma história do género que importa trabalhar para encontrarmos o que provoca os mais significativos contributos com vista a essa intensidade. O prefácio do livro, escrito por António Monteiro, faz um brevíssimo historial, mas acaba por se centrar mais nas mais espectaculares (e palavrosas!) mas menos intensas histórias dos “twist endings” da EC Comics do que encontrar maiores picos em autores tais como Junji Ito, Kazuo Umezu, Josh Simmons, Breccia com Lovecraft, Delano, Ridgway e Alcala em Hellblazer, e, entre nós, a lavra de David Soares, por exemplo.

Nem todas as histórias deste volume procuram criar então esses ambientes para criar tais emoções intensas. Algumas das soluções têm até mesmo a atitude de uma rábula, se não totalmente cómica (como no caso da história de Álvaro), pelo menos surgindo como um comentário desviante para o gozo do género mas não o horror propriamente dito, ou não o atingindo de forma mais acabada (os casos de Joana Afonso, Santo, Carlota Borba, e até mesmo Mosi, que parece recuperar um sketch sobre a Beyoncé). O que não quer dizer que não sejam contributos curiosos para todo o mythos das personagens e/ou tropos do género, como a história de Rui Lacas que traz algo de decisivamente novo e divertido para o campo.

Outros autores tiram partido mais do ambiente, da ideia poética permitida pelo gótico, pelo ambivalente, do que propriamente numa construção linear e narrativa. São os casos de Andreia Rechena, de José Smith Vargas e também aquelas escritas por André Oliveira (com desenhos de Osvaldo Medina, João Sequeira e Ricardo Drumond) e por Bruno Caetano (como desenhos de Nuno Rodrigues) que têm uma preferência pela voz off enquanto as acções decorrem do que por uma ambientação mais directamente associadas as elas. Em todos estes casos de colaborações entre argumentistas e desenhadores, temos casos de descrições internas das emoções das personagens ou de algo acima delas, para descobrir depois uma cena gore final, relativamente expectável. Pepedelrey também apresenta uma história em que é mais o que não é dito do que é revelado, mas onde (como no caso da de Lacas) a montruosidade se revela estar do lado das “pessoas normais” do que aquele que mais rapidamente pensaríamos ser o monstro.

São poucos os aproveitamentos da cultura portuguesa, de forma específica, para criar os elementos narrativos necessários, apesar de termos visto ultimamente um cada vez maior aproveitamento dessa mesma matéria em vários projectos, ou pelo menos uma inscrição na nossa realidade cultural e social. Oliveira e Sequeira invertem e demonizam o Carnaval dos Caretos de Podence. Tiago Pimentel tira partido de uma lenda comum dos lobisomens, tal como contada ainda hoje em certos círculos rurais. A esmagadora maioria das histórias, porém, cria locais e situações que poderiam ter lugar quer em Portugal quer noutro local qualquer, se bem que haja exemplos também concretos de outras inscrições, como é o caso de Filipe Alves, que cria uma história nos Estados Unidos no período após a Guerra Civil: apesar de ser uma situação relativamente comum no género (o encontro com um grupo de pessoas que se revelam mortas), e o último desenho ser reminiscente de Comès, Alves cria uma brevíssima peça moral, algo militarista, mas acertada.

A utilização dos géneros, por mais fantásticos que eles sejam, serve muitas vezes um propósito de comentar a sociedade em que nos movemos. Espécies de espelhos focados, que atingem directamente um tema desejado. Quase todas as histórias tocarão, de uma forma ou outra, essas ideias, afinal, podendo ler nelas ideias sobre a paternidade, a solidariedade, o egoísmo, etc. Mas há umas mais directas do que outras, como é o caso das de Álvaro, Santo e Mosi, e depois a de Rui Gamito. Fernando Relvas mistura a ficção científica e militar com o terror, numa história com o melhor trocadilho da antologia, mas a sua prestação visual é algo sumária demais.


Luís Cavaco apresenta uma peça aparentemente mais envolvida de modo íntimo com o género de terror, mas a narrativa é opaca, para não dizer confusa. Pedro Brito tira partido da sua assinatura sobre relações humanas e ambientes urbanos, para mostrar que o horror não precisa de se revestir de formas fabulosas. José Lopes, pelo contrário, precisamente não revelando quase nada das circunstâncias das suas personagens, ou da razão que a leva a perder-se no bosque, acaba por nos trazer a história mais efectivamente eficaz no género do horror-arte.


Ainda que os sobressaltos providenciados por esta antologia não sejam assim tão intensos como isto, há um pouco de tudo nas suas páginas, mostrando acima de tudo uma diversidade de instrumentos narrativos, artísticos e estilísticos em curso na cena contemporânea, e as possibilidades de responder aos desafios de forma diferenciada. O que é, em si mesmo, um estado de saúde.  

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